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11 de setembro de 2023
Quais os impactos da judicialização na gestão de pessoas no setor público?
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Ana Volpe/Senado
Quais os impactos da judicialização na gestão de pessoas no setor público?

Quais os impactos da judicialização na gestão de pessoas no setor público

Judicialização de pessoal na administração pública é universo à espera de ser explorado

Anna Carolina Migueis Pereira

No clássico Alice no País das Maravilhas, publicado pelo britânico Lewis Carroll em 1865, a jovem Alice, em uma tarde pouco movimentada, está deitada em um gramado quando vê passar um coelho branco, usando um colete e um relógio de bolso, que repete estar atrasado e se movimenta apressado até entrar em uma toca. A menina fica curiosa e decide seguir o coelho, mas acaba caindo na toca por onde o animal havia entrado. Uma vez lá dentro, é revelada a existência de um mundo até então desconhecido.

Coelhos brancos e universos inexplorados por vezes também surgem no mundo jurídico. Nos últimos anos, inúmeros estudos foram produzidos no direito e em outras áreas do conhecimento sobre os impactos da judicialização da saúde, tanto em relação ao planejamento e à execução da política pública em si, quanto em matéria de gestão do orçamento público. Hoje, a produção bibliográfica é tão vasta que é possível realizar pesquisar por ferramentas como hashtags.

Até o momento, porém, outro tema de relevância similar para as administrações públicas de todo o país ainda não recebeu a mesma atenção: a judicialização em matéria de pessoal. A expressão, neste texto, é empregada para se referir a um conjunto amplo de demandas judiciais, individuais ou coletivas, que versam sobre temas como:

- Concursos públicos, inclusive, dever de realização de concursos, regras de editais de certames em andamento, questionamento de gabaritos, reprovações de candidatos, preterições e quaisquer demandas relativas ao ingresso de servidores públicos nos quadros da administração;

- Regime jurídico de agentes públicos ativos, aqui considerados os direitos assegurados a servidores estatutários, celetistas, comissionados, temporários e quaisquer outros tipos de vínculos de trabalho com a administração pública; e

- Regime jurídico de agentes públicos inativos e pensionistas, abrangidas nessa categoria ações relativas aos regimes próprios de previdência social.

Qual a importância da judicialização de pessoal?

Cada um desses assuntos possui uma série de peculiaridades e não é pretensão desde texto desconsiderá-las, mas, apenas, oferecer um olhar conjunto sobre os impactos da atuação do Poder Judiciário nos vínculos de trabalho da Administração Pública e, sobretudo, da falta de dados a respeito do tema.

Estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas e divulgado pelo próprio Supremo Tribunal Federal (STF) em 2013 aponta que 14% das demandas que chegavam ao STF versavam sobre servidores públicos. Desde então, a matéria continua a frequentar quase que semanalmente os informativos de jurisprudência da corte.

Outro relatório elaborado pela FGV mostra que, entre 1988 e 2013, 23% dos processos em que a Procuradoria-Geral da República atuou junto ao STF tinham por objeto questões
atinentes a servidores públicos.

Em relação a outros tribunais, para além do STF, a ausência de maiores informações sobre o tamanho e os impactos da judicialização de pessoal é ainda maior. A explosão de demandas é sentida por advogados, procuradores, servidores e membros do Poder Judiciário, mas faltam dados que permitam quantificar e qualificar o fenômeno.

A seguir, são apresentados dois breves estudos de caso que ilustram a importância de pesquisas que promovam a coleta e análise de dados nos tribunais estaduais e federais em relação ao tema dos servidores públicos.

Caso 1: Tema 485 da Repercussão Geral (Concursos Públicos)

Em 2015, ao analisar o Tema 485 da Repercussão Geral, o STF pacificou a seguinte tese:

não compete ao Poder Judiciário substituir a banca examinadora para reexaminar o conteúdo das questões e os critérios de correção utilizados, salvo ocorrência de ilegalidade ou de inconstitucionalidade.

A decisão da Suprema Corte impõe – ou deveria impor – ao Poder Judiciário um dever de deferência em relação aos critérios de avaliação e correção adotados pela Banca Examinadora de concursos públicos, vedando-lhe substituir-se aos avaliadores, exceto nos casos em que verificada alguma nulidade. Na prática, porém, nem sempre é o que ocorre.

Os volumes 103 e 115 da coletânea Jurisprudência em Teses, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), publicados em 2018, trazem uma série de julgados daquele tribunal que reafirmam o Tema 485. Muitos deles reformam decisões de instâncias inferiores que haviam determinado a anulação de questões, a recorreção de provas ou a reintegração de candidatos a concursos em andamento. Com o filtro de admissibilidade dos recursos excepcionais nos tribunais locais cada vez mais rígido, não seria imprudente afirmar que há muitos outros casos similares que não chegam ao STJ.

Um estudo empírico mais abrangente seria capaz de capturar, tanto do ponto de vista quantitativo, o número de demandas em que se discute a incidência do Tema 485 da Repercussão Geral pelos Tribunais de Justiça e pelos Tribunais Regionais Federais, quanto sob o prisma qualitativo, as razões que levam essas instâncias a afastarem sua aplicação nos casos concretos que lhes são apresentados.

Caso 2: Tema 1.218 da Repercussão Geral (Piso Nacional do Magistério)

O segundo estudo de caso aqui empreendido envolve os limites da aplicação do piso nacional do magistério, fixado pela Lei 11.738/2008, aos professores da rede pública, servidores públicos, ativos e inativos, a ser decidida pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 1.218 da Repercussão Geral. Antes de chegar ao STF, onde permanece pendente, a questão foi decidida pelo STJ, no Tema 911 dos Recursos Repetitivos, tendo este tribunal entendido pela aplicação do piso nacional às carreiras de servidores públicos, inclusive os estaduais, municipais e distritais.

Resta, contudo, pendente de apreciação no STF a forma de aplicação do piso nacional às carreiras de servidores do magistério: isto é, se o piso corresponde apenas à remuneração mínima da carreira ou se ele deve incidir de maneira escalonada sobre todos os níveis destas categorias de servidores, estruturadas de acordo com as leis locais.

Muito embora o recurso escolhido para representar a repercussão geral se refira ao estado de São Paulo, a matéria é de grande repercussão para boa parte dos demais entes federativos, tanto estados quanto municípios. Em nível estadual, pelo menos Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro também possuem recursos extraordinários sobrestados sobre a matéria à espera do julgamento do caso paradigma.

Estimativas constantes das peças processuais apresentadas pelos entes federativos apontam para um aumento de gastos com pessoal na ordem dos bilhões de reais ao ano caso prevaleça a aplicação do piso de maneira escalonada para todos os níveis da
carreira.

De modo similar, dados mais aprofundados sobre a quantidade de demandas relativas à judicialização de pessoal, seus assuntos mais comuns, as taxas de condenação da Fazenda Pública e os valores envolvidos nestas ações poderiam auxiliar entes federativos e estudiosos do tema a compreender o impacto da judicialização de pessoal no orçamento público e na gestão de pessoas no setor público.

Em que direção seguir?

Apesar da inegável relevância dos servidores públicos, seu regime jurídico e suas formas de ingresso para a administração pública brasileira em todas as esferas da federação, o tema da judicialização de pessoal, até o momento, ainda não despertou a mesma atenção dedicada a temas como a judicialização da saúde.

A partir de dois curtos estudos de caso, o presente artigo buscou lançar luzes sobre o tema, na esperança de servir como espécie de coelho branco para despertar o interesse de Alices na academia e na sociedade civil para um universo até então inexplorado. Assim como na obra de Carroll, este coelho tem pressa.

Enquanto isso, se os estudos de casos aqui realizados são capazes de demonstrar algum argumento, é que: (i) decisões do STF com frequência não são suficientes para evitar a judicialização; e (ii) ações em matéria de pessoal podem ter impactos profundos sobre as finanças dos entes públicos.

ANNA CAROLINA MIGUEIS PEREIRA Doutora e mestre em Direito Público pela Uerj. Pesquisadora do
Uerj Reg.

 

Leia o artigo publicado no JOTA


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